Amigos, como vocês, eu tenho acompanhado a evolução dessas eleições com raiva e, por vezes, desespero.
Perco meu tempo debatendo com pessoas que têm os argumentos mais furados. Umas das características da democracia (e de qualquer esforço de imaginação coletiva e cooperação) é que os envolvidos estejam de acordo com as premissas básicas do debate.
No caso, para mim, a premissa básica é a continuação do estado de direito, a continuação de um sistema democrático e aberto (e portanto, plural e diverso), a continuação do próprio debate.
Mas os eleitores de Bolsonaro atropelam qualquer tentativa de chegar a pressupostos comuns. Para não ter o PT no governo, vale TUDO, até mesmo acabar com o Estado democrático. Realmente, os brasileiros têm bem pouco apreço pela democracia.
Vale entregar o governo a um homem incompetente, que pouco fez durante 26 anos de congresso e que tem muito pouco a mostrar que o qualifique como um “caçador de corruptos”, pois ao que tudo indica, sua família e ele mesmo aumentaram seu patrimônio muitas vezes durante os últimos anos.
Para não ter o PT no governo, vale até mesmo entregar o governo a um sub-letrado que vocifera contra tudo o que ele considera que vai contra a imagem idealizada de um Brasil que nunca existiu (ou quem sabe existiu somente na minissérie Anos Dourados, da famigerada Globo).
Fui recentemente criticado por ter apontado o pouco preparo intelectual de Bolsonaro, tendo em vista que Lula, como líder do PT, tampouco teve estudo.
Mas comparar Bolsonaro e Lula intelectualmente é uma piada. Lula não teve estudo, mas acho que não se pode negar que seja inteligente. Porém, isso tudo eh “gaslightening”: o candidato é Haddad, não Lula. Haddad é infinitamente mais bem preparado que Bolsonaro, teve experiência executiva, é um cara excepcional.
Mas gostaria de comentar o que li na timeline do meu amigo e xará, Roberto Sakai. Houve ali uma discussão que resume muito bem o que está acontecendo no Brasil nesse momento.
O argumento surgiu com a noticia de que Bozonaro prometeu acabar com o fornecimento gratuito de medicamentos aos portadores de HIV.
Deixem-me desde já dizer que, dentre todas a “políticas” propostas por Bolsonaro, esta seja para mim a mais perversa e malvada (não há outra palavra).
Uma pessoa escreveu na timeline do Roberto que concordava com a medida, pois afinal de contas, se a pessoa não havia contraído HIV por transfusão de sangue, então era sinal claro de que estaria fazendo “coisa errada” e, portanto, não seria responsabilidade do governo federal cuidar de gente que “faz coisa errada”.
Para além da completa e total ignorância sobre o vírus do HIV e seu impacto nas sociedades, e da completa idiotice que consiste em achar que pessoas fazendo sexo estejam “fazendo coisa errada”, aquele argumento é o cerne dessa ideologia ultra-conservadora, ultra-direitista e ultra-neo-liberal: a crença de que a “sociedade não existe” (nas palavras de Thatcher), o que existe é o individuo.
Cada um deve ser o herói da sua própria vida (nas palavras de outra mulher, a Ayn Rand), e o governo deveria se concentrar em prover segurança e deixar que as pessoas vivam as suas próprias vidas, como bem entenderem, cada um com as vantagens e desvantagens que a natureza, ou Deus (ou o mercado e a própria sociedade), lhe deram; uma espécie de “super meritocracia”.
Pois bem, é ESSE O PROBLEMA! Eu não consigo imaginar uma sociedade onde somente o indivíduo tenha lugar, e onde não haja espaço para imaginação coletiva, para esforços e ações coletivas para superarmos os problemas que nos afligem como SERES HUMANOS VIVENDO EM SOCIEDADE.
Um desses esforços coletivos, por exemplo, é EDUCAR NOSSAS CRIANÇAS, para que elas realizem seu pleno potencial humano e possam ser cidadãs que contribuam para a sociedade construtivamente.
É por isso que vivemos em cidades, em proximidade uns dos outros, compartilhando recursos: porquê para além da competição e da “mão invisível” do mercado, nós seres humanos cooperamos e avançamos JUNTOS muito mais rápida e efetivamente.
Mas o que isso tem a ver com Bolsonaro? Bolsonaro é o contrario disso. Ele não tem visão de sociedade e de ação coletiva, apenas de poder e dominação. Bolsonaro habita um mundo sombrio, assombrado por “comunistas” e gays que sem trégua ameaçam a sua masculinidade infantil. Nesse sentido, Bolsonaro não é o novo. Bolsonaro é desesperadamente antiquado.
Tomemos o meio ambiente como ponto de partida de uma visão compartilhada de futuro.
A política ambientalista, que está avançando muito na Europa, vê a questão da sustentabilidade como inseparável das estruturas sociais (bons governos, cidadãos conscientes e participativos) que permitem que cuidemos dos nossos sistemas naturais de maneira efetiva. E isso é uma missão para sociedades inteiras, que se engajam em ação coletiva para salvar o planeta. O bom disso é que em democracias que funcionam para proteger o planeta, não há lugar para pobreza e injustiça, pois o cidadão pleno, participativo e “fiscalizador” do governo implica termos sistemas de educação, saúde e moradia que funcionem para todos. A pena para um estado ineficiente e corrupto é, como vemos no Brasil, a perda de legitimidade do governo. Quando isso acontece, o meio ambiente também sofre. Sociedade e meio ambiente estão ligados intimamente.
O que estamos vendo no Brasil não é o fim do PT, mas uma crise profunda da democracia como sistema de governo. Não creio que as nossas frágeis instituições, geridas por esse bando de homens velhos, desatualizados, estúpidos e ressentidos com as mudanças culturais (para melhor) que a nossa sociedade experimentou nos últimos 30 ou 40 anos, possam sobreviver a um governo como será o de Bolsonaro.
Eleger Bolsonaro será um tiro no pé para o Brasil e para o mundo, pois ele tem a cabeça nos anos 50. Ele é intelectualmente incapaz de entender esses desafios e visões de futuro, e moralmente inepto para conceber um mundo que não seja definido pelo conflito e pela força bruta, mas pela cooperação e trabalho coletivos, de todos nós como cidadãos, JUNTOS.